quinta-feira, 3 de julho de 2008


BRASIL ALFABETIZADO EM FOCO
PGM 1 – Alfabetização de Jovens e Adultos: um pouco da História

Leôncio Soares*

“Deixar de ser sombra dos outros”
A alfabetização de jovens e adultos foi e continua sendo um problema de grandes proporções. Quando foi proclamada a República em nosso país, os índices de analfabetismo entre os brasileiros chegavam à casa dos 80%. Isso significava que de cada 10 brasileiros, só dois conseguiam ler uma carta, um documento, um jornal ou um livro. Os demais dependiam de alguém para decifrar o que estava escrito em qualquer texto.A economia naquele período girava em torno da agricultura e grande parte da população morava no interior do país. Logo, não se colocava como uma das necessidades básicas da população (OLIVEIRA, 2001) a prática da leitura e da escrita. Poucos são os registros da existência de alguma escola para essa população.
A alfabetização na Campanha Nacional de 1947 a 1963
Só em 1947 é que o Governo brasileiro lança, pela primeira vez, uma campanha de âmbito nacional visando alfabetizar a população. Foram criadas, inicialmente, dez mil classes de alfabetização em todos os municípios do país. Como não se tinha uma tradição, um acúmulo de experiências e de estudos sobre como alfabetizar adultos, o discurso em torno da campanha, os argumentos didáticos e pedagógicos tinham como ênfase a educação das crianças. Em uma publicação destinada aos professores – Guia do Alfabetizador – um dos mentores da Campanha, Professor Lourenço Filho assim se expressou:
“É mais fácil, mais simples e mais rápido ensinar a adultos do que a crianças.”
Não é bem assim. Um agrupamento de adultos é caracterizado por uma grande heterogeneidade. São pessoas com experiências e bagagens distintas provindas das vivências no campo familiar, social e no mundo do trabalho. Há os jovens, os mais jovens – os adolescentes – os adultos e os mais adultos – os da terceira idade. Essa diversidade de trajetórias requer um melhor preparo do educador, logo, não é mais fácil que ensinar para crianças. Também não é mais simples. Via de regra, o adulto é visto e se vê como alguém que ‘perdeu tempo’, que não aprendeu no momento propício e que se encontra com a ‘cabeça dura’ para se envolver em novos processos de formação. Essas características tornam o processo mais complexo e requerem um ‘olhar diferenciado’ para esse público, exigindo propostas pedagógicas adequadas e metodologias apropriadas para a educação de adultos. Desta forma, dificilmente o processo será mais ‘rápido’ como preconizado no material direcionado aos alfabetizadores. Se a heterogeneidade e a diversidade são características das turmas de alfabetização, logo, exigirão uma proposta que contemple o tempo necessário a uma formação que atenda ao objetivo de alfabetizar que, de forma alguma, se restrinja a só codificar e a decodificar o código escrito. Vê-se dessa maneira que a primeira Campanha Nacional de Alfabetização se assentou sobre alicerces de base fraca para sustentar um projeto nacional que alfabetizasse a população. Em decorrência das idéias expressas no documento aos professores, viu-se que, na inexistência de acúmulo de experiências e estudos sobre alfabetização de adultos que dessem suporte às ações governamentais, para uma ação ‘fácil’, ‘simples’ e ‘rápida’ usou-se qualquer material, de qualquer forma, com qualquer alfabetizador, ganhando qualquer coisa.
A alfabetização nos movimentos de educação e cultura popular – anos 50 e 60
Paralelamente à ação governamental, surgiram, no final da década de 50 e início da 60, movimentos de educação e de cultura popular. São exemplos desses: MEB – Movimento de Educação de Base; MCP – Movimento de Cultura Popular; CPC – Centro Popular de Cultura; CEPLAR – Campanha de Educação Popular; De pé no chão também se aprende a ler. Esses movimentos emergiram em diversos locais do país, mas foi no Nordeste que se concentraram em maior número e em expressividade. Naquele período, 50% da população – ou seja, metade da população – era composta de camponeses analfabetos; por conseguinte, mais de 50% da população brasileira era excluída da vida política nacional, por ser analfabeta. Os movimentos surgem da organização da sociedade civil, visando alterar esse quadro socioeconômico. Conscientização, participação e transformação social foram conceitos elaborados a partir da prática e das ações desses movimentos. A alfabetização de adultos foi uma dessas práticas, que procurava vincular cultura – educação, realidade – transformação social. Paulo Freire organizou um processo de alfabetização a partir da realidade do educando, no qual a leitura do mundo antecedia a leitura da palavra.
Durante o ano de 1963, encerrou-se a campanha nacional de alfabetização que havia se iniciado em 1947 e Paulo Freire assumiu elaborar um Plano Nacional de Alfabetização junto ao Ministério da Educação. A interrupção desse processo se deu com o golpe militar de 31 de março de 1964, em que muitos desses movimentos foram extintos e seus participantes perseguidos e exilados.
A alfabetização no Mobral
Se a prática da alfabetização desenvolvida pelos movimentos de educação e cultura popular estava vinculada com um processo de conscientização da população sobre a realidade vivida, processo esse que era acompanhado de uma participação dos educandos visando à transformação dessa mesma realidade, com o golpe, a alfabetização se restringe a um exercício de aprender a ‘desenhar o nome’.
O Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização – reedita uma campanha de âmbito nacional, conclamando a população a fazer a sua parte – “Você também é responsável, então me ensine a escrever, eu tenho a minha mão domável, eu sinto a sede do saber ”. O Mobral surge com força e muitos recursos. Recruta alfabetizadores sem muita exigência: repete-se, assim, a despreocupação com o fazer e o saber docente: qualquer um que saiba ler e escrever pode também ensinar. Qualquer um, de qualquer forma e ganhando qualquer coisa.
O Mobral é criado em 1969 e suas ações são efetivadas a partir de 1971. É extinto em 1985 com a Nova República e o fim do Regime Militar e, em seu lugar, surge a Fundação Educar.
Seus últimos anos foram marcados por denúncias que culminaram na criação de uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – para apurar os destinos e a aplicação dos recursos financeiros e falsos índices de analfabetismo.
Como na Campanha anterior de 1947/1963, iniciativas simultâneas às do Governo federal foram surgindo no interior da sociedade civil. Práticas de alfabetização foram desenvolvidas no interior de igrejas, de associações comunitárias e de sindicatos. Essas práticas, muitas vezes, mesclaram-se com as do Mobral, surgindo assim ações mais produtivas como as que aconteceram na Baixada Fluminense que, com os recursos do Mobral desenvolveram uma experiência que foi além do que se esperava.
A alfabetização na Fundação EDUCAR
A Fundação Educar foi criada em 1985 e, diferentemente do Mobral, passou a fazer parte do Ministério da Educação. A Fundação, ao contrário do Mobral que desenvolvia ações diretas de alfabetização, exercia a supervisão e o acompanhamento junto às instituições e secretarias que recebiam os recursos transferidos para execução de seus programas. Essa política teve curta duração pois em 1990 – Ano Internacional da Alfabetização – em lugar de se tomar a alfabetização como prioridade, o governo Collor extinguiu a Fundação Educar, não criando nenhuma outra que assumisse suas funções. Tem-se, a partir de então, a ausência do Governo federal como articulador nacional e indutor de uma política de alfabetização de jovens e adultos no Brasil.
A alfabetização no MOVA
Contraditoriamente, no Brasil foi promulgada uma nova Constituição Federal que estendeu o direito à educação aos que ainda não havia freqüentado ou concluído o Ensino Fundamental. Com a desobrigação do Governo federal em atender a esse direito (BEISIEGEL, 2000), os municípios iniciam ou ampliam a oferta de educação para jovens e adultos. No início dos anos 90, surgiu o MOVA – Movimento de Alfabetização – com uma nova configuração, que procurava envolver o Poder Público e as iniciativas da sociedade civil. Os MOVAs se multiplicaram como uma marca das administrações ditas populares, tendo o ideário da educação popular como princípio de sua atuação: o ‘olhar’ diferenciado sobre os sujeitos da alfabetização; elaborar a proposta a partir do contexto sociocultural dos sujeitos; os sujeitos como co-partícipes do processo de formação. Portanto, é característico do MOVA o vínculo Estado-sociedade, enquanto gestores de uma política pública de alfabetização e a associação entre educação e cultura como bases dessa política.
A alfabetização no PAS - Programa Alfabetização Solidária
Em 1996, foi lançado em Natal, no Rio Grande do Norte, o Programa Alfabetização Solidária, em um evento nacional de Educação de Jovens e Adultos, como etapa preparatória para a V CONFINTEA – Conferência Internacional de Educação de Adultos. Na ocasião, participaram como proponentes o Ministro da Educação Paulo Renato e Dona Rute Cardoso, representando a Comunidade Solidária. O lançamento do PAS causou um frisson entre os participantes do Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos, por reeditar práticas consideradas superadas por pesquisadores e estudiosos da alfabetização. Com duração de 6 meses, sendo um para ‘treinamento’ dos alfabetizadores e 5 meses para desenvolver a alfabetização, o PAS propunha uma ação conjunta entre Governo federal, empresas, administrações municipais e universidades. Atendendo aos municípios com IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – inferior a 0,5, o PAS propunha às Instituições de Ensino Superior das regiões Sul e Sudeste que supervisionassem as ações nas cidades localizadas nas regiões Norte e Nordeste. O formato do Programa atraiu críticas de pesquisadores (HADDAD, 2000 e DI PIERRO, 2001) por se tratar de um programa aligeirado, com alfabetizadores semipreparados, reforçando a idéia de que qualquer um sabe ensinar, e com forte ênfase na relação de submissão entre o Norte-Nordeste (subdesenvolvido) e o Sul-Sudeste (desenvolvido). Com a permanente campanha – adote um analfabeto – o PAS tem contribuído com a imagem que se faz de que quem não sabe ler e escrever como uma pessoa incapaz, passiva de adoção, de ajuda, de uma ação assistencialista diferentemente de um sujeito de direito.
Considerações
Chegamos ao ano 2000, ao século XXI, com um índice elevado de brasileiros que ainda não têm o domínio da leitura, da escrita e das contas. Se já não fosse pouco os quase 20 milhões de analfabetos considerados absolutos, passam de 30 milhões os considerados analfabetos funcionais que chegaram a freqüentar uma escola mas, por falta de uso da leitura e da escrita, retornaram à posição anterior. E, pasmem, chega à casa dos 70 milhões os brasileiros acima de 15 anos que não atingiram o nível mínimo constitucional, ou seja, o Ensino Fundamental. Somam-se a esses os neoanalfabetos que, mesmo freqüentando a escola, não estão conseguindo atingir o domínio da leitura e da escrita. São produtos de uma nova exclusão que, mesmo tendo se escolarizado, não conseguem ler e interpretar um simples bilhete ou texto. Esse novo contingente estará fazendo parte do público demandatário da Educação de Jovens e Adultos. Aumenta com isso a dívida social para com os mais excluídos, na proporção inversa da responsabilidade do Estado em atender ao direito constitucional à educação. Que significado tem para as pessoas, nos dias de hoje, poder ler e escrever a ponto de deixarem de ser sombras dos outros? Como atingirmos níveis satisfatórios de desenvolvimento econômico e social que sejam, de fato, para todos?
Se na passagem do Brasil Império para o Brasil República tínhamos a maioria da população sem o domínio da leitura e da escrita e isso significou uma herança socioeconômica de grande desafio, o que dizer, e principalmente o que fazer, nos dias de hoje, quando herdamos um Brasil ainda repleto de analfabetos, quando desejamos a mudança desse cenário a fim de chegarmos a um Brasil Alfabetizado?
Bibliografia
BEISIEGEL, Celso de Rui. Questões de atualidade na educação popular: ensino fundamental de jovens e adultos analfabetos ou pouco escolarizados. Educação em Revista. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2000.
DI PIERRO, Maria Clara. Descentralização, focalização e parceria: uma análise das tendências nas políticas públicas de educação de jovens e adultos. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.27, n.2, p. 321-337, jul./dez., 2001.
FERRARO, Alceu Ravanello. História quantitativa da alfabetização no Brasil. Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez: Brasília, DF: INEP, 1989.
FREIRE, Paulo. Desafios da educação de adultos ante a nova reestruturação tecnológica. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
HADDAD, Sérgio. Aprendizagem de jovens e adultos: avaliação da década de Educação para Todos. São Paulo em Perspectiva, São Paulo: SEADE, vol. 14, n.1, p.29-40, jan./mar., 2000.
OLIVEIRA, Marta Kohl. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2001.
SOARES, Leôncio. As Políticas de EJA e as Necessidades Básicas de Aprendizagem dos Jovens e Adultos. Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2001.
NOTAS:
* Professor da Faculdade de Educação da UFMG.

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLAWWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO
“Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo."

Freire (2004,p.59) Pedagogia da Autonomia